quarta-feira, 4 de abril de 2007

O dia em que engoliram o homem

Virou-se mais uma vez, já estava suando e tentava livrar-se daquele bolo de lençol e cobertas em que estava metido. Relutou mais uma vez, porém o calor já havia consumido toda sua indolência, abriu os olhos e sua primeira visão foi o teto branco. Uma rachadura e algumas falhas na pintura. Arrastou seu corpo mole até o banheiro, onde enfim pôde se assustar com aquela imagem horripilante refletida no espelho. Estava espantado, aterrorizado, chocado, pois o que via era exatamente o que não via. Olhou novamente, acenou, pulou... nada! Só enxergava a porta que dava ao quarto. Onde estava ele?
Correu para a janela mais próxima, olhou-se no vidro, e onde estava seu reflexo? Tirou uma foto de si mesmo, mas aonde estava sua imagem? Havia sumido. Como isso era possível? Como iria melhorar a aparência? Como iria saber se estava com uma boa aparência? Lavou seu rosto, e a curiosidade de ver a si mesmo estava tão grande que fê-lo quebrar o espelho. Bobagem. Devia estar alucinado... já já isso passaria.
Colocou aquele velho shorts e uma camisa arejada perfeita para uma manhã de sábado, amarrou seu velho tênis, companheiro de longas caminhadas, fechou a porta vermelho-queimado de seu apartamento, e, virando o corredor que levava as escadas, quase levou um susto com Liz, a moça ruiva cuja beleza atraia todas as atenções masculinas para si. Mas hoje ela estava diferente, parecia mais velha e acabada. Isso fez-lhe pensar um pouco sobre o estranho fato que lhe ocorrera ao acordar. Será? Não, não... desceu os degraus, andou mais um pouco, cumprimentou seu Jorge, cujas rugas e ramelas destacavam em seu rosto.
Balançou a cabeça, e enfim saiu do condomínio, mas qual foi sua surpresa ao notar quão diferente estavam as pessoas. Descabeladas, descombinadas, enrugadas, espinhentas, relaxadas... sua mente agora estava a mil, era verdade. Observava como estavam todas desesperadas e preocupadas, umas choravam, outras riam, porém todos envergonhados de suas aparências. Foi um dia esquisito.
E mais uma vez o relógio despertou. Talvez aquele pesadelo tenha passado... espreguiçou-se, sentia a confiança ao seu lado... "hoje vai dar tudo certo". Déjà vu? Sim, havia acontecido a mesma coisa do dia anterior. As horas corriam, e a sociedade já estava ficando irada. E seguiu-se as semanas, os meses, as revoltas, os relaxos. Até que cansaram. Entregaram-se à uma vida sem imagem, livre de preconceitos. E a cada vez que olhavam ao espelho, já conseguiam ver não seus corpos, mas sim, suas almas...